A verdadeira BGS são os amigos que fazemos pelo caminho
Sobre o esgotamento com eventos nerds e sentir saudades da minha comunidade
“Você vem amanhã?” “Não, sem condições, muito cansativo.”
Esta era minha saudação padrão-seguida-de-resposta-padrão aos amigos que encontrei nos corredores da última edição da Brasil Game Show, que aconteceu entre os dias 09 e 13 de outubro no Expo Center Norte. O desânimo com a possibilidade de passar mais do que um dia no evento era geral, e só se motivava minimamente quem precisaria repetir a dose a trabalho (meu caso). Faz sentido. Somos um grupo de profissionais da área de jogos (professores, jornalistas, RPs e desenvolvedores) na faixa dos 30 aos 45, com alguns anos de atuação na área e muitos eventos no currículo, e nos acostumamos a explicar o cansaço mencionando a nossa idade e o nosso status de veteranos do mercado.
Eu comecei a ir nos chamados eventos nerd – que podem ser convenções de animes, feiras de quadrinhos, exposições de jogos, e qualquer outro espaço onde algum empresário atento às “trends” da juventude decida vender hambúrgueres superfaturados e Funkos Pop – aos 15 anos de idade. São 21 anos me espremendo em corredores de artists’ alley, ajudando cosplayers a vestir armaduras complicadas em banheiros públicos e cantando o tema de abertura de Neon Genesis Evangelion junto àquela parte da plateia que fica mais grisalha a cada edição. Para piorar, eu fiz como muitos outros nerds e transformei tudo isso em meu campo de trabalho. E agora com alguma renda, anos de acumulação de objetos bonitinhos e inúteis e a consciência ambiental emergente da maturidade, andar pelos corredores cheios de produtos geek parece meio bobo. Vamos nos afogar em plástico para produzir chaveiros do Picle Rick? A única coisa para fazer naquele estande é tirar uma foto, sem jogo? É óbvio que enjoaria da repetição de evento após evento. O entusiasmo mesmo fica reservado para o bar pós BGS. Esse sim merecia a resposta unânime “claro que vou!” quando era mencionado a meus amigos.
Mas não é só o bar. Eu continuo gostando de eventos menores e focados na comunidade local, como o Festival Jogatório. Eu adoro congressos acadêmicos. Contrariando qualquer bom senso e consciência de gênero, eu amo jogar campeonatos de pré-lançamento de Magic: The Gathering em lojas especializadas, olhando pastas, trocando cartas e socializando com desconhecidos até a madrugada. Eu não estou cansada de eventos, de falar com pessoas ou de experiências extremamente nerdolas. Mas eu luto contra a preguiça sempre que preciso ir a grandes feiras como a BGS ou a CCXP. Por quê? Era tão divertido antes. A Beatriz adolescente contava os dias para os eventos de anime completamente amadores do interior de São Paulo, em que a grande diversão era juntar moedas para comprar alguma coisinha barata de Sailor Moon e assistir DVDs pirateados de animações que não estavam na TV. Como eu posso preferir essas memórias às feiras cheias de ostentação e atrações internacionais? Sei que não é só nostalgia da juventude, e sei que a predileção pelos bares e eventos de nicho é uma dica. Percebi que, na verdade, o que sinto falta e aprecio é de vivências de comunidade para meu lado nerd.
Muito trabalho e pouca diversão fazem do nerd um bobão
Ser nerd quer dizer que juntei os cacos de gosto duvidoso que formam a minha personalidade em espaços de fandom. Em seu livro Invasores do Texto de 1992, uma das obras fundadoras dos estudos de fãs, Henry Jenkins analisa como comunidades se formam em torno de obras da cultura pop extrapolando as intenções de seus criadores e funcionando de acordo com as necessidades e desejos do grupo. Exemplos citados pelo próprio autor são as fanfics slasher de Star Trek, mostrando romances LGBTAIQ+ que não estavam no texto original da série, e os fóruns de compartilhamento de VHS de séries de TV nos anos 90, onde fãs de diferentes países gravavam os episódios diretamente da televisão e organizavam a circulação dessas fitas, sem visar lucros, para pessoas que não tinham acesso ao material. Existem décadas de estudos da cultura de fãs e inúmeros exemplos amplamente documentados de suas práticas, mas um ponto comum entre os diferentes fandoms é que a comunidade é a protagonista, mesmo que a cultura pop seja o tema. As experiências de fandom são, em geral, experiências de vivência comunitária, e por isso nem sempre agradáveis: discussões bobas, bullying, disputas de poder… lá está o mal estar da civilização, o preço a pagar por cada link de torrent compartilhado. Mas, apesar do mergulho inevitável no inferno da alteridade, participar de um fandom também traz um sentimento de identificação que é prazeroso, nos ajuda a entender nosso lugar no mundo e muitas vezes gera uma rede de conexões significativas entre pessoas, produtos culturais e espaços de vida pública. As fofocas, uma das grandes atrações do Barzinho Game Show, são um exemplo disso: fortalecem o senso de comunidade e circulam informações que contribuem para a proteção e regulação do grupo.
Quando comecei a frequentar eventos nerd, o amadorismo da coisa toda garantia que a comunidade fosse a principal estrela ali. Eles eram dias para dividirmos paixões, questionamentos e vivências em comum, mesmo com nossas individualidades e distâncias. A curadoria das atividades era completamente feita pela comunidade: nós éramos os palestrantes, o staff, o público e as atrações. Era tosco e caótico, mas autêntico. Feiras eram espaços para conversar e conhecer. Mas, ignorando a pieguice e nostalgia que já estão ameaçando a respeitabilidade deste texto, esse amadorismo também garantia que ninguém fosse pago para fazer aquilo tudo acontecer. E nós queríamos, e merecíamos, ser pagos. Muitos desses fãs, eu inclusive, se profissionalizaram, o mercado cresceu, e os eventos perderam a cara mambembe dos primeiros anos. Coisas básicas, como fraldários e acessibilidade, se tornaram norma depois de muita luta de parte da comunidade. Amigos passaram das cadeiras de público para os escritórios da organização. Ganhamos em muitos aspectos. Todo mundo trabalhando muito. E nos encontrando cada vez menos, porque trabalhamos muito.
A cultura de fãs é cheia de ambivalências, e sua profissionalização é mais uma delas: o abandono do amadorismo traz o reconhecimento das empresas e a formalização das práticas dos fãs, e com isso, também o apagamento das experiências da comunidade quando as necessidades comerciais e as normas de trabalho da indústria substituem as formas de fazer do grupo. Em sua análise das equipes competitivas de Free Fire atuando no cenário amador de Belém, os pesquisadores Tarcizio Macedo e Thiago Falcão discutem como a camaradagem entre os proplayers existe como forma de atender necessidades que nascem da falta de reconhecimento institucional do circuito. Observei uma situação parecida quando escrevi, coautoria com Lucas Goulart e Inês Hennigen, uma análise de como membros de fóruns dedicados ao jogo World of Warcraft discutiam a presença de ativismo LGBTQIA+ nele em dois momentos: em 2016, antes da Activision-Blizzard demonstrar qualquer apoio a diversidade sexual e de gênero no MMORPG, e em 2019, quando esse apoio era parte do posicionamento público, e da estratégia de marca, da empresa. Enquanto no primeiro momento os posts sobre o tema eram bastante políticos e combativos, buscando educar e convencer a comunidade da importância dos clãs exclusivamente queer ou abertamente inclusivos para o ambiente do jogo, além de cobrar medidas mais incisivas de seus responsáveis comerciais na proteção desses grupos, após a adoção do discurso pró diversidade por parte da empresa o tom das publicações mudou, e os posts passam a simplesmente debochar daqueles contrários ao ativismo em WoW, recomendando a eles que caíssem fora. O lado positivo é que pessoas de minorias passaram a se sentir mais livres para jogar sem o desgaste de justificar sua presença ou de tentar educar agressores. Mas o lado negativo é que a persistência de conteúdos lgbtqfóbicos no fórum ainda em 2019 mostra que o discurso de inclusão da Activision-Blizzard não se refletiu em suas práticas de moderação, e que o marketing de diversidade promoveu uma despolitização do debate sobre essas ações, e por consequência, de um importante espaço de diálogo de comunidade.
Só no computer
E por falar os fóruns, por onde andam os fóruns? Saudades. A curadoria algorítmica nas timelines das múltiplas redes sociais substituiu quase que totalmente (o Reddit é, ainda, um similar que sobrevive com relativa popularidade, mesmo que nichado) os fóruns como principais espaços para os fandoms online. Muito do que chamamos de comunidades de fãs hoje são grupos organizados em torno de influenciadores e perfis específicos, como as páginas de “stan” no finado Twitter (tão jovem). Ou seja, em vez de comunidades horizontais, os fandoms estão organizados em redes de indíviduos e seus grupos de seguidores, o que traz uma perspectiva muito mais individualista para o tipo de conversa encorajada nesses espaços. Conflitos são ao mesmo tempo evitados, para não se perder seguidores, e potencializados, porque treta traz engajamento. Temas são selecionados de acordo com “trends” e com o que parece mais atrativo para parceiros comerciais. Como um aluno sintetizou bem, anos atrás, quando me explicou durante uma aula de marketing digital porque adorava brigar no Facebook: “é um espaço onde dá para brigar com placar, você sabe quem está ganhando pelo número de likes”. Se a briga é pelos aplausos da plateia, ela é mais performance do que diálogo.
A hostilidade gratuita e as brigas agressivas entre fandoms (que frequentemente culminam em ameaças, exposições e outros crimes virtuais) não são as únicas consequências de concentrarmos toda a vivência digital da cultura de fãs em plataformas com algoritmos que operam em uma lógica no cruzamento entre João Kleber e Dr. Abobrinha. A teórica Nicole Lammerichs descreve como o comportamento dos fãs em redes sociais é estruturado pelas ferramentas e limitações das plataformas, definindo-o como data-driven fandom. Alguns exemplos: streamar uma música ou álbum repetidamente, muitas vezes em volume inaudível, para que alcance posições altas no ranking das plataformas; organizar mutirões para a subida de hashtags ou de trend topics; ocupar caixas de comentários com textos padronizados; denunciar em massa perfis ligados a artistas rivais dos seus ídolos, etc. Muitas dessas estratégias são transposições de coisas que fãs já faziam em espaços offline: dá para dizer que spammar uma live no Instagram é, de certa forma, como gritar na porta de um hotel. Mas, ao mesmo tempo, ter toda quase toda nossa experiência de grupo como fãs estruturada por plataformas digitais faz com que muito dela fique condicionado a experiência competitiva e hostil desses espaços. Existe também um apagamento das críticas, já falar mal de um ídolo é visto como uma forma de sabotagem do desempenho algorítmico dele (além de supostamente fornecer material para fandoms rivais), que favorece muito mais as empresas milionárias de mídia do que os fãs de cultura pop.
Mas, felizmente, algo aconteceu para nos lembrar que existe um caminho possível para plataformas. O banimento temporário do X no Brasil, a plataforma preferida para quem procura fandoms e/ou crimes de ódio, levou muitas pessoas a conhecerem o Bluesky, uma rede com melhores ferramentas de moderação e ausência de curadoria algorítmica e monetização baseada em engajamento. O funcionamento da simpática rede da borboleta azul garante a cada usuário maior controle do que visualiza e a capacidade de silenciar rápida e eficazmente agressores e desconhecidos mal educados. O resultado foi que, pela primeira vez em séculos de sofrimento digital, muitos de nós ficamos encantados por estarmos em uma plataforma onde conseguimos ver os posts de nossos contatos e fazer interações baseadas em interesses em comum. Essa forma de vivência comunitária online não morreu, ela só estava enterrada debaixo de pilhas de interações vazias moldadas por empresários de tecnologia que parecem vilões de filmes infantis dos anos 80.
Mas esse era um texto sobre a BGS, não?
Voltando para o que motivou esse texto: será que podemos resgatar as experiências de comunidade de fandoms nos eventos também, assim como o Bluesky parece possibilitar no caso das plataformas? Acabei dando um pequeno spoiler da resposta parágrafos acima: sim, eventos de nicho com foco na comunidade local têm feito isso muito bem. Meu exemplo preferido é o Festival Jogatório, organizado pelo coletivo Firma Gamedev e sediado pelo Sesc em São Paulo. O evento faz uma curadoria de jogos independentes a partir de projetos inscritos por qualquer pessoa que queira participar, via edital (nada de estandes pagos), e incentiva uma distribuição horizontal dos expositores em que todos recebem o mesmo espaço e destaque. É um ótimo lugar para conversar com os desenvolvedores de jogos e com outros interessados em videogame independente.
Reconheço que a BGS é um evento comercial, com objetivos diferentes do Jogatório, e que a reprodução desse modelo seria muito difícil. Mas acho que uma alternativa é a promoção de mais espaços de diálogo com curadoria ativa da comunidade e presença mais marcante na programação do evento do que a atual área business. A Gamescom Latam, outra feira comercial, foi mais bem sucedida nesse sentido e mais elogiada pela comunidade. No fim, o que mais gostamos em eventos são espaços para conversar sobre videogames sem a necessidade de performar por miséria de likes e views, seja num estande chique, em uma sala de imprensa lotada ou na calçada de um bar numa noite chuvosa.